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Austeridade fiscal segue sendo obstáculo para cumprimento do Plano Nacional de Educação

Medidas do novo arcabouço fiscal têm causado disputa de recursos na Educação e podem inviabilizar o cumprimento de mais um PNE

Jovens em um protesto com uma grande faiza preta escrito em branco: - cortes + escolas
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil 

Mesmo tendo sua vigência prorrogada, o atual Plano Nacional de Educação (PNE, lei 13.005/2014), foi majoritariamente descumprido. Um dos motivos para que as metas e estratégias não tenham sido alcançadas foi a limitação de recursos imposta em 2016 pela Emenda Constitucional 95 (EC 95, conhecida como Teto de Gastos), que congelou os gastos públicos em áreas sociais. Com isso, a meta 20 do PNE, que determina o investimento de 10% do PIB em Educação, nunca foi alcançada, ficando estagnada na faixa dos 5.5%. O novo PNE, que está em discussão no Congresso e deve ser aprovado até o fim do ano, repete a meta de 10% do PIB para o decênio 2026-2036 mas, como alertam entrevistados pela Iniciativa De Olho nos Planos, pode ter o mesmo destino caso a política fiscal do país não mude de direção.

“Apesar de dar fim ao chamado Teto de Gastos, considerado pela ONU a medida mais drástica contra os direitos sociais do planeta, o novo Arcabouço Fiscal (Lei Complementar nº 200/2023) manteve a política de austeridade restritiva às políticas sociais e ambientais, não impondo limites às despesas financeiras. Dessa forma, o principal obstáculo à concretização do novo PNE segue sendo a política econômica de austeridade que, com base no fundamentalismo econômico pregado pelos mercados financeiros, continuará vorazmente disputando bens e recursos públicos em prol de interesses de grandes grupos econômicos”, resume Denise Carreira, professora do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da USP.

Principais formas de financiar a educação e o PNE 

Atualmente é o arcabouço fiscal, aprovado em 2023, que determina as regras de gastos do dinheiro público. Ele substituiu a EC 95, segundo a qual gastos em áreas sociais só poderiam subir de acordo com a inflação, sem aumento real no investimento. O arcabouço fiscal em vigor prevê que as despesas podem aumentar além da inflação, mas que esse aumento tem um teto e deve ser compatível com o aumento da arrecadação. Ou seja, apesar de mais flexível, ainda impõe um limite. O arcabouço deve cumprir todas as obrigações constitucionais (como os pisos para Educação e Saúde), não se sobrepondo a elas.

Quase tudo – cerca de 90% – que o governo arrecada já tem destino certo. Na Educação, gastos obrigatórios incluem o Fundeb e o piso constitucional. O Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação  –  é a principal fonte de financiamento da educação básica brasileira, subsidiando cerca de 40 milhões de matrículas, e com mecanismos concebidos para enfrentar desigualdades educacionais. O Fundeb ficou de fora do novo arcabouço fiscal, o que significa que as regras que limitam os gastos do governo não se aplicam a ele. Outro compromisso da União é investir em educação ao menos 18% de tudo que é arrecadado com impostos – é o piso constitucional. Como o nome indica, esse é um compromisso obrigatório, constando na Constituição Federal, e o Arcabouço também não se aplica ao piso.

Além dos gastos obrigatórios, há os chamados recursos discricionários, que por não serem obrigatórios em geral são os mais ameaçados em contexto de corte de gastos e controle de orçamento. Na educação, estão entre os gastos discricionários: transporte e alimentação escolar, livros didáticos, Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), os repasses a universidades federais e recursos de assistência estudantil.

Investidas contra o orçamento da Educação

As normativas que asseguram e regulamentam o financiamento da Educação têm sido descumpridas repetidamente e, desde o endurecimento das políticas de austeridade no Brasil, vários projetos de emendas, leis ou medidas provisórias têm sido colocados em pauta para alterar o repasse. Por exemplo, em 2024, especulou-se a possibilidade de alterar as regras do piso constitucional para Saúde e Educação para que fossem limitados pelo arcabouço fiscal.

Às vésperas do recesso parlamentar de 2024, uma intervenção foi bem sucedida: a PEC do Ajuste Fiscal (54/2024) estabeleceu limites de gastos para o governo nos próximos anos e “carimbou” parte dos recursos do Fundeb para a Educação Integral. Como cobrimos à época, isso foi um retrocesso porque, além de representar um ataque à autonomia dos entes federados, permitiu que o governo custeie a Educação Integral com os recursos de uma despesa obrigatória – ao invés de, por exemplo, criar um programa específico. A proposta original previa uma “reserva” ainda maior, e que também abarcasse a alimentação escolar, mas esses pontos conseguiram ser revertidos após pressão popular.

“Foi um grande absurdo. Para economizar nas despesas discricionárias, o governo fez essa manobra para incluir o gasto de fomento de uma política nas despesas obrigatórias do Fundeb. Como constatamos diariamente, há uma pressão constante e intensa sobre o governo Lula para mais cortes nas políticas sociais e ambientais em nome de um “equilíbrio fiscal” que penaliza a garantia de direitos da população e segue concentrando recursos nas mãos de uma elite financeira”, avalia Denise Carreira, professora da USP.

Alguns meses depois, em junho, foi publicada pelo Executivo a Medida Provisória (MP) 1303/2025. Essa MP ganhou visibilidade por pontos como a incidência de Imposto de Renda em certos tipos de investimentos e as novas regras do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF).  Mas também impacta o financiamento da educação: caso aprovada de forma definitiva, ela inclui bolsas de estudo (inclusive o programa Pé de Meia) como parte dos recursos de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), fundamental para que as escolas ofereçam infraestrutura adequada para o processo pedagógico, com materiais e equipamentos necessários, além de profissionais qualificados. Segundo o próprio Ministério da Fazenda, a medida faz ajustes nas despesas públicas para “fortalecer o arcabouço fiscal”.

A Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) posicionou-se de forma contrária à MP 1303/25, avaliando que ela desvia a finalidade do MDE inscrita em outras normativas, como a Constituição Federal a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). “A LDB é clara em dizer que recursos do MDE são aqueles que tem a ver com o objetivo fim da educação, que é o processo educacional. Despesas como bolsas de estudo e assistência social são importantes, claro, mas não se enquadram nessa classificação”, explica Nelson Cardoso do Amaral, professor da UFG e presidente da Fineduca. Para ele, não restam dúvidas de que essa é uma medida para aliviar o arcabouço fiscal – nesse caso, fazendo com que as despesas obrigatórias abarquem mais áreas do que o originalmente planejado. “O Fundeb, por exemplo, é despesa obrigatória e não está no arcabouço fiscal. O piso constitucional também. Então os recursos pagos via vinculação ‘livram’ despesas do arcabouço. A ideia embutida é essa”, diz.

A nota da Fineduca pontua que a aprovação dessa medida provisória, ao incluir bolsas e assistência social no pacote de recursos da educação, “fragiliza ainda mais a necessária elevação dos recursos financeiros aplicados em Educação Pública para consecução do equivalente a 10% do PIB”. E o presidente da entidade aprofunda: “Ao colocar mais recursos aí, o Estado pode argumentar que cumpriu o repasse obrigatório para a educação, mas na realidade são vários os penduricalhos que não são exatamente educação”.

Nelson reforça, no entanto, a importância das despesas em assistência social, inclusive no contexto educacional, sublinhando que a crítica é o desvio de finalidade para fins de alívio do arcabouço fiscal. “A culpa não é o fato do dinheiro estar vinculado, a culpa é do arcabouço fiscal. É ele que tem que mudar e não o dinheiro da educação”.

Em julho, outra proposta exigiu mobilização de movimentos sociais da educação: a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 66/2023, de autoria do Senador Jader Barbalho (MDB/PA). A PEC dispõe sobre parcelamentos e pagamentos de dívidas dos municípios, impondo limites ao pagamento de precatórios (dívidas). Originalmente, o texto propunha uma espécie de desvinculação dos gastos em educação e saúde nos municípios – ou seja, que se invista menos do que o mínimo constitucional – e ameaçava as aposentadorias destes profissionais. “Foi mais um mecanismo para tirar dinheiro da Educação no sentido em que permitia que os municípios flexibilizassem seus gastos mínimos até 2032″, explica o presidente da Fineduca.

Esses retrocessos conseguiram ser revertidos por pressão social, mas o alerta segue ligado para as intervenções nos mecanismos de financiamento. “O novo arcabouço espremeu o dinheiro das políticas sociais, especialmente porque Educação e Saúde, protegidos pelo piso constitucional, vão continuar tendo recursos”, diz Nelson Amaral, explicando que isso causa uma disputa por esses repasses. Tanto que a MP 1303 buscou incluir mais áreas no guarda-chuva da “educação” e a PEC 66 buscou flexibilizar o piso.

Brechas privatistas

Outro ponto alertado pela Fineduca sobre a Medida Provisória 1303/25 é sua brecha privatista – isto é, a possibilidade dos recursos públicos fortalecerem o setor privado da educação. Isso porque os recursos do MDE abarcariam também os valores pagos a bolsas de estudo em instituições privadas. O que foi classificado como “medida que favorece a privatização da educação” pela entidade, que “concorre com a efetivação da garantia do direito à educação a todos com qualidade e equidade, o que só pode ser garantido pelo sistema público de ensino”.

O enfraquecimento do caráter público é aspecto central nas atuais disputas políticas no campo educacional, segundo o professor da Unifesp Sergio Stoco, membro do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e do Fórum Nacional de Educação (FNE). As manifestações desse enfraquecimento seriam múltiplas – desde o financiamento do setor privado por bolsas de estudo, compra e vendas de produtos educacionais, plataformização e a própria concepção ou implementação de diversas políticas.

“É como se fosse um cabo de guerra com três lados: um luta pela escola pública e seu financiamento, pelo Estado de bem estar social; o outro quer desmontar tudo, todas as estruturas e regulamentações a favor de um mercado; e o terceiro preserva a estrutura, mas acredita na administração privada, é a atualização dos neoliberais. Esses dois últimos grupos puxam para lados diferentes, mas ambos vão contra o primeiro, que está com dificuldades”, explica o professor.

Na avaliação de Stoco, o terceiro grupo – que preserva a estrutura, mas preza pela administração privada – é o que tem ganhado mais espaço nas disputas atuais. “Nosso Estado está tomado por esse modelo de mediação entre o uso dos recursos públicos e um modelo empresarial, de eficiência. Assim, são criados vários produtos, empresas e assessorias para mobilizar este mercado. E os gestores públicos já não têm mais a visão da educação como bem público, que passa a ser pensada em uma lógica mais empresarial, como se estivessem apenas administrando gastos de um condomínio, prezando apenas pelo bem do indivíduo”, acrescenta.

As investidas têm sido muitas, como lembra o professor: desde a aprovação do novo Fundeb, na discussão do Novo Ensino Médio e, agora, com a plataformização. No caso do Fundeb “em um determinado momento, para nossa surpresa, foi uma discussão unânime. O interesse [neoliberal] era flexibilizar a regulamentação para que o recurso não fosse exclusivamente destinado à manutenção e desenvolvimento dos sistemas públicos”, relembra Stoco. “Para isso é importante que os sistemas estejam desestruturados, que as escolas não tenham o mínimo – daí a importância de nos centrarmos na defesa da escola pública e do Custo Aluno-Qualidade”.

No caso do Novo Ensino Médio, o professor Sergio Stoco explica que o ensino técnico-profissional tem uma brecha privatista importante através dos possíveis convênios com organizações privadas que podem ofertar disciplinas (o que também impacta na precarização docente). Além disso, políticas mais generalizadas como a plataformização e avaliações externas de larga escala permitem a penetração do setor privado na rede pública de forma preocupante. “Penso que a plataformização é hoje o que melhor sintetiza o modelo de privatização, porque é totalitária (estrutural no seu alcance e centralizante nas formas de controle)”, completa. E as ofensivas privatistas estão presentes também na discussão do Plano Nacional de Educação (PNE).

PNE em tramitação nesse contexto

Enquanto surgem e tramitam propostas para alterar mecanismos de financiamento da Educação pública, o Legislativo também discute o novo Plano Nacional de Educação. O PL 2.614/2024 traz 18 metas para o próximo decênio e mantém pontos do atual PNE, mas ainda está distante do que foi deliberado na Conferência Nacional de Educação (CONAE), não contemplando várias de suas agendas. Vários dos objetivos foram inseridos de forma mais generalista, com métricas menos específicas ou metas intermediárias menos ambiciosas. É o caso do financiamento: o novo projeto conserva a meta de financiamento de 10% do PIB para a educação, mas a meta intermediária de financiamento ficou para o 6º ano de vigência (frente ao 5º ano do Plano atual), e o estabelecimento de 7% do PIB até o sexto ano, em comparação com os 10% previstos anteriormente pela Lei nº 13.005/2014. Tanto que a Fineduca, em Nota Técnica divulgada em dezembro de 2023, sugere metas intermediárias diferentes das propostas pelo governo para facilitar seu cumprimento.

As emendas ao texto original já foram apresentadas por várias entidades e movimentos, como a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação – incluindo um pacote que trata da inclusão explícita das agendas de gênero, raça e sexualidade em sua intersecção – e, nesse momento, realizam-se audiências públicas. A tramitação e votação devem se intensificar nesse segundo semestre.

Para Denise Carreira, da Faculdade de Educação da USP, o novo PNE precisa garantir um conjunto de metas e estratégias que diminuam as profundas desigualdades raciais na educação, implementem a LDB alterada pelas leis 10.639/2023 e 11.645/2008 e fortaleçam políticas de ação afirmativas nas instituições de ensino superior. “Sabemos que a tramitação do novo PNE no Congresso enfrenta um contexto muito adverso, mas temos lutado para avançar na perspectiva das deliberações da CONAE e da incorporação de proposições dos movimentos negros, de organizações antirracistas e dos demais movimentos sociais comprometidos com os direitos constitucionais”, diz Denise. “Mas para que a gente consiga que os avanços a serem conquistados saiam do papel e cheguem no cotidiano da população, precisamos de políticas públicas com financiamento adequado”. Isso seria traduzido em um Fundeb fortalecido, na concretização do Custo-Aluno-Qualidade Inicial, na construção do Fundo Nacional para a Educação Superior e na recomposição dos recursos das despesas discricionárias (não obrigatórias), para que possam sustentar e fomentar políticas previstas no desenho da Política Nacional de Equidade.

O presidente da Fineduca, Nelson Cardoso Amaral, reforça a incompatibilidade da meta de financiamento do PNE com as políticas de austeridade fiscal, como o novo Arcabouço em vigor. “A meta de 10% do próximo decênio já está ameaçada por conta dessa lógica de colocar os ‘penduricalhos’ na Educação para contorná-lo. Além disso, os recursos dos tributos atuais não são suficientes para atingir 10% do PIB, é preciso adicionar novas fontes, ao que propomos uma compensação financeira pelo uso dos recursos naturais brasileiros, além de alterações na carga tributária do país e no pagamento de juros da dívida pública”. “Há uma disputa violenta por recursos, e temos que fazer pressão para o nosso lado, levar para a sociedade, até pela dificuldade de vencer no Congresso”, diz o professor da UFG.

Também o membro do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e do Fórum Nacional de Educação (FNE), Sergio Stoco, prevê uma luta dura no Congresso, tanto nas discussões de reformas, como a tributária, quanto do novo PNE. “O Congresso está mais forte em sua estratégia de coação e extorsão, e vai botá-la em prática. Por isso não podemos nos desviar de nosso centro comum: uma escola pública  com estrutura adequada comum para todas as crianças, jovens, e adultos, com autonomia e profissionais valorizados. Tudo o que já modelamos como qualidade”.

 

Texto: Nana Soares || Edição: Claudia Bandeira

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